Breves considerações sobre a competência dos entes federativos para tratarem de “loterias”

A despeito da competência privativa legislativa da União Federal, os Estados-Membros e o Distrito Federal também são competentes para tratarem sobre a matéria.

Sem embargo da competência privativa da União Federal (“União”) para legislar sobre sistemas de consórcios e sorteios (art. 22, XX, da CF/88), o que contempla o assunto “loterias”, não se pode ignorar o fato de que os Estados-Membros (“Estados”) e o Distrito Federal (“DF”) possuem autonomia para regulamentar a exploração dos produtos lotéricos no âmbito dos seus respectivos territórios, especialmente no que concerne à destinação dos recursos oriundos da atividade lotérica e a fixação dos respectivos percentuais.

Acerca do tema, cabe lembrar que o Supremo Tribunal Federal decidiu no âmbito das Arguições de Descumprimento de Preceito Fundamental (“ADPF”) nº 492 e 493 que as loterias são serviços públicos passíveis de exploração pelos Estados, tanto por concessão como permissão (art. 175 da CF/88) não havendo exclusividade da União:

Os arts. 1º e 32 do Decreto-Lei 204/1967, ao estabelecerem a exclusividade da União sobre a prestação dos serviços de loteria, não foram recepcionados pela Constituição Federal de 1988 (…). A competência privativa da União para legislar sobre sistemas de consórcios e sorteios (art. 22, inciso XX, da CF/88) não preclui a competência material dos Estados para explorar as atividades lotéricas nem a competência regulamentar dessa exploração. (…) a Súmula Vinculante 2 não trata da competência material dos Estados de instituir loterias dentro das balizas federais, ainda que tal materialização tenha expressão através de decretos ou leis estaduais, distritais ou municipais. (…) O enunciado da súmula e os precedentes que a fundamentaram expressamente elucidaram que a disposição legal ou normativa vedada aos Estados e ao Distrito Federal é a que inova e, portanto, legisla sobre o tema de consórcios e sorteios, inclusive bingos e loterias. [ADPF 492, rel. min. Gilmar Mendes, P, j. 30-9-2020, DJE 292 de 15-12-2020.].

A inteligência do que foi julgado pela Suprema Corte revela que a União só possui “exclusividade” para legislar sobre (i) normas gerais de loteria; e (ii) a definição das modalidades lotéricas passíveis de exploração.

Vale dizer, tanto os Estados como o DF, no âmbito de suas particularidades, possuem plena competência administrativa e regulamentar para esmiuçar as nuances sobre as loterias que instituírem em seus limites territoriais, desde que não contraírem aquilo que for legislado pela União de maneira geral (“princípio da simetria”).

Tal entendimento parece ser o que mais se coaduna com o princípio do pacto federativo, ao prestigiar uma arrecadação mais equânime pelos Estados e DF perante a União no que se refere ao serviço público lotérico.

Certamente, uma arrecadação exclusivamente destinada à União Federal quanto ao assunto “loterias” acabaria por enfraquecer os demais entes federativos perante a administração central, malferindo o cerne da República Federativa do Brasil, que sempre procurou, ao longo dos anos, conferir mais autonomia aos Estados, DF e Municípios em detrimento da administração centralizada da União (“Federalismo Centrífugo”).

Debruçando-nos mais detalhadamente sobre a competência dos Estados no que concerne à arrecadação lotérica, o voto do Ministro Gilmar Mendes nas retromencionadas ADPFs 492 e 493 denota que não há obrigatoriedade aos Estados de seguirem aquilo que foi disposto pela União Federal quanto à destinação do produto de arrecadação das loterias, nem tampouco sobre os percentuais de destinação ou a regulamentação das modalidades esportivas em si.

Assim, configura-se, a meu ver, verdadeiro abuso da competência de legislar, quando a União vale-se do art. 22, inciso XX, para excluir todos os demais entes federados, da arrecadação que deles provém, ou para restringi-la de forma irrazoável e anti-isonômica, impedindo o acesso a recursos cuja destinação é, pelo texto constitucional, direcionada à manutenção da seguridade social, nos termos do art. 195, III, da CF/88 e, ao menos em nível federal, também aplicados no financiamento de programas na área social e comunitária.

Essa compreensão nos parece evidente ao se levar em conta que o Supremo Tribunal Federal restringiu a exclusividade da União para os aspectos legislativos gerais e estabelecimento das modalidades lotéricas passíveis de exploração, nada dizendo sobre a destinação do produto arrecadado, respectivos percentuais destinados e/ou nuances das modalidades lotéricas.

Ou seja, se a Suprema Corte tivesse tido a intenção de restringir a competência estadual sobre tais matérias, certamente o teria feito expressamente, como o fez para a definição das modalidades lotéricas e aspectos legislativos gerais, o que não foi o caso.

Nada obstante, afigura-se logicamente impossível a estrita observância, pelos Estados, de todas as disposições relativas à arrecadação da União, seja pelas especificidades e diferenças entre as estruturas institucionais de cada Ente Federativo, seja em razão da autonomia decorrente do princípio federativo retromencionado.

Ademais, os §§ 2º, 3º e 4º do art. 24 da CF/88 preceituam, respectivamente, que: (i) “A competência da União para legislar sobre normas gerais não exclui a competência suplementar dos Estados”; (ii) “Inexistindo lei federal sobre normas gerais, os Estados exercerão a competência legislativa plena, para atender a suas peculiaridades”; e (iii) “A superveniência de lei federal sobre normas gerais suspende a eficácia da lei estadual, no que lhe for contrário.”.

Assim, a título de exemplo quanto às loterias de prognósticos de eventos esportivos (“quota-fixa”), é cediço que a exclusividade da União está atinente à fixação das modalidades passíveis de exploração, mas não os seus detalhamentos, os quais hão de ser estabelecidos por cada Estado e o DF, dentro de suas competências constitucionais.

E nem se diga que se trata de situação inédita em nosso ordenamento jurídico, dado que, se a União possui competência privativa para legislar sobre direito processual (art. 22, I, da CF/88), os Estados e o DF são competentes para legislarem sobre procedimentos em matéria processual (art. 24, XI, da CF/88).

Igualmente, a despeito da competência para legislar de trânsito seja privativa da União (art. 22, XI, da CF/88), todos os entes federativos gozam de competência para estabelecer educação no trânsito (art. 23, XII, da CF/88). Em idêntico sentido, apesar de competir privativamente à União legislar sobre a seguridade social (art. 22, XXXII, da CF/88), é concorrente a competência para legislar sobre a previdência social (art. 24, XII, da CF/88), um dos prismas da seguridade social como um todo.

Semelhantemente, embora a União seja privativamente competente para legislar sobre direito civil e seguros (art. 22, I, da CF/88), os Estados são competentes para legislar sobre consumo em geral (art. 24, V, da CF/88).

A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, a propósito, não deixa dúvidas sobre o ordenamento jurídico pátrio prestigiar a autonomia dos Estados perante a União:

A delimitação do campo de atuação legislativa dos entes federativos, em matéria de competência concorrente (art. 24, CF), requer postura interpretativa que considere: (i) a intensidade da situação fática normatizada com a estrutura básica descrita no tipo da regra de competência; (ii) valorização do fim primário a que se destina a norma, relacionado, no federalismo cooperativo, com o princípio da predominância de interesses. Na seara da competência legislativa concorrente, a norma geral assenta-se no pressuposto que a colaboração federativa depende de uma uniformização do ambiente normativo. [ADI 2.435, rel. min. Cármen Lúcia, j. 21-12-2020, P, DJE de 26-3-2021.].

Nos casos em que a dúvida sobre a competência legislativa recai sobre norma que abrange mais de um tema, deve o intérprete acolher interpretação que não tolha a competência que detêm os entes menores para dispor sobre determinada matéria (presumption against preemption). Porque o federalismo é um instrumento de descentralização política que visa realizar direitos fundamentais, se a lei federal ou estadual claramente indicar, de forma adequada, necessária e razoável, que os efeitos de sua aplicação excluem o poder de complementação que detêm os entes menores (clear statement rule), é possível afastar a presunção de que, no âmbito regional, determinado tema deve ser disciplinado pelo ente menor. Na ausência de norma federal que, de forma nítida (clear statement rule), retire a presunção de que gozam os entes menores para, nos assuntos de interesse comum e concorrente, exercerem plenamente sua autonomia, detêm Estados e Municípios, nos seus respectivos âmbitos de atuação, competência normativa. [RE 194.704, red. do ac. min. Edson Fachin, j. 29-6-2017, P, DJE de 17-11-2017.].

Embora a União detenha a competência exclusiva para ‘instituir sistema nacional de gerenciamento de recursos hídricos e definir critérios de outorga de direitos de seu uso’ (art. 21, XIX, da CF/88), além de competência privativa para legislar sobre águas (art. 22, IV, da CF/88), não se há de olvidar que aos estados-membros compete, de forma concorrente, legislar sobre proteção ao meio ambiente (art. 24, VI e VIII, CF), o que inclui, evidentemente, a proteção dos recursos hídricos. Esse entendimento mostra-se consentâneo, inclusive, com a previsão constitucional que defere aos estados-membros o domínio das águas superficiais ou subterrâneas. A legislação impugnada está em conformidade com a Constituição Federal, na medida em que regulamentou, em nível estadual, a cobrança pelo uso da água, sem incorrer em violação do texto constitucional ou em invasão de competência legislativa própria da União. Embora a União detenha a competência para definir as normas gerais sobre a utilização dos recursos hídricos e a Lei Federal 9.433/1997 tenha estabelecido o arcabouço institucional da Política Nacional de Recursos Hídricos, o arranjo institucional e as competências dos órgãos estaduais integrantes do Sistema Estadual de Gerenciamento de Recursos Hídricos deve obedecer aos ditames das leis estaduais, pois os estados-membros têm autonomia constitucional para formular suas leis de organização administrativa, inclusive para o setor de recursos hídricos. [ADI 3.336, rel. min. Dias Toffoli, j. 14-2-2020, P, DJE de 6-3-2020.]

Portanto, parece-nos ser de clareza solar que os Estados, exemplificativamente, sejam competentes para definirem as nuances das modalidades esportivas, destinação dos produtos de arrecadação lotérica e fixação dos respectivos percentuais no âmbito de suas autonomias e em seus limites territoriais.

Ainda a título de exemplo, afigura-se igualmente constitucional, em nosso sentir, sob o prisma da competência, a Lei Estadual da Paraíba nº 12.703/2023, sancionada pelo Governador João Azevedo, que normatiza atividades de prestação de serviço público da LOTEP em todo o território estadual, incluindo o comércio eletrônico de jogos lotéricos.

São essas as nossas principais considerações concernentes às competências dos entes federativos para tratarem sobre o tema “loterias”.

Por:

Carlos Gonçalves Junior – Doutor e Mestre em Direito do Estado pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Pós-doutorado em Democracia e Direitos Humanos pelo Ius Gentium Conimbrigae” – Centro de Direitos Humanos da Universidade de Coimbra (Portugal).

Professor de Direito Constitucional, Direito Parlamentar e Direito Eleitoral da Faculdade de Direito da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Membro Fundador da Academia Brasileira de Direito Eleitoral e Político (ABRADEP). Membro da Associação Brasileira de Constitucionalistas Democratas (ABCD: http://constitucionalistas.org.br) entidade que constitui a Seção Brasileira do Instituto Iberoamericano de Derecho Constitucional (IIDC: https://iidc.juridicas.unam.mx/) e é filiada à The International Association of Constitutional Law (IACL: http://www.iacl-aidc.org/en/).

Autor de livros e artigos relacionados ao Direito Eleitoral e Político. Conferencista sobre Direito Eleitoral e Político no Brasil e no exterior. Sócio fundador do escritório Gonçalves e Bruno Sociedade de Advogados (2001). Árbitro da Câmara de Mediação e Arbitragem da Câmara de Comércio e Indústria Brasil-China. Árbitro da Câmara de Arbitragem Brasil Canadá. Advogado atuante em temas relacionados ao Direito Público.

Luís Felipe Pardi – Advogado associado em Gonçalves e Bruno Sociedade de Advogados – GBSA, inscrito na OAB/SP sob nº 409.236, graduado pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (2017) e pós-graduado em Direito Processual Penal pela Escola Paulista da Magistratura (2020).

Referências Bibliográficas:

[1] Loteria é prestação de serviço público e pode ser explorada pelos estados: https://portal.stf.jus.br/noticias/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=452666&ori=1.

[2] Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 (“CF/88”) – https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm.

[3] https://auniao.pb.gov.br/servicos/doe/2023/junho/diario-oficial-28-06-2023.pdf.

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