A influência da “janela partidária” nos rumos da democracia representativa brasileira

Janela-partidaria

Com o início da janela partidária se aproximando, espera-se uma intensa troca de legendas pelos congressistas, influencia. Como esse instituto influencia na (in)fidelidade partidária e na manutenção das legendas não ideológicas.

O calendário para as Eleições Gerais de 2022 já foi definido e no dia 03 de março tem  início da chamada “janela partidária”, período em que deputadas e deputados federais, estaduais e distritais poderão trocar de partido para concorrer ao pleito deste ano sem perder o mandato.

Diante dessa proximidade do início da janela, faz-se mais uma vez essencial estabelecer o debate acerca da fidelidade partidária e da natureza do mandato parlamentar no Brasil.

As críticas à democracia representativa brasileira não são poucas. A existência de um quadro partidário extremamente fragmentado e a presença de inúmeros partidos com caráter ideológico inconsistente são pontos problemáticos. Não à toa há um grande descrédito da população em relação à classe política.

Nesse contexto, a fidelidade partidária se apresenta como um dos principais temas de discussão, pois está diretamente ligada à concepção de representação política. A intensa troca de partidos pelos parlamentares, nesse contexto, enseja várias consequências perigosas, como a difícil identificação pelo eleitor da ideologia de cada partido e dos trabalhos prestados pelo seu candidato.

Boa parte dos autores define a fidelidade partidária a partir de dois elementos distintos: a observância das diretrizes do partido pelo parlamentar e a permanência do mesmo no partido que se elegeu [1]. Assim sendo, a infidelidade partidária do mandatário pode ser relacionada tanto à indisciplina partidária, quanto ao seu sentido estrito, sinônimo de “transfuguismo” [2], relacionada a costumeira troca de partido pelos parlamentares.

A discussão acerca da (in) fidelidade partidária é essencial para investigar-se a natureza do mandato parlamentar no país e, ao mesmo tempo, identificar problemas relacionados representação política.

Para essa investigação, inicialmente, vale destacar que com base na ordem constitucional emanada em 1988 e pelo posicionamento das Cortes até o ano de 2007, a desfiliação partidária injustificada não gerava qualquer consequência à titularidade do mandato, isto é, o parlamentar que mudava de legenda permanecia com o direito à cadeira. Até aquele momento, o mandato parlamentar tinha inequívoco caráter representativo, na qual o representante eleito é o titular do mandato.

Entretanto, a partir de 2007, as Cortes passaram a entender que nesses casos, a consequência da perda do mandato seria possível – em primeiro momento para ambos os sistemas eleitorais existentes no Brasil, e a partir de 2015 apenas para o sistema proporcional.

Essa mudança de paradigma operada pelos Tribunais significou um ponto de virada para o tratamento brasileiro à infidelidade partidária, e sem dúvida operou modificações substanciais à concepção da natureza do mandato parlamentar.

O que se viu foi o surgimento de uma concepção híbrida do mandato parlamentar, que poderia ser classificada por uma natureza representativa partidária. Sob esse panorama, suas características fundamentais seriam a) a subordinação do eleito ao estatuto e programa partidários; b) a representação operada pelo partido político, cujo exercício se daria por meio das pessoas a ele filiadas; e c) a liberdade de manifestação do parlamentar, em relação aos atos tipicamente legislativos. [3]

Aliado a isso, as alterações legislativas ocorridas tanto em 2015, quanto em 2017, solidificaram esse novo entendimento, ao incorporar ao ordenamento jurídico brasileiro a consequência da perda do mandato parlamentar em decorrência da desfiliação partidária injustificada.

Diante de todo esse contexto, adotando o Brasil o entendimento acerca da possibilidade de perda do mandato por troca injustificada de partido (ao menos no sistema proporcional) poderia nos levar a crer que as migrações em número elevadíssimo poderiam ser diminuídas trazendo, em consequência, um fortalecimento da representação política no país e das ideologias partidárias.

Talvez a conclusão até pudesse ser verdadeira, não fosse a criação pela Minirreforma Política de 2015 (Lei nº 13.165/15) da chamada “janela de infidelidade”, que passou a permitir que nos trinta dias anteriores ao prazo limite de filiação partidária para se concorrer às eleições, o detentor do mandato possa migrar de legenda, permanecendo no cargo – A mudança, no entanto, permite essa migração apenas para aqueles que tenham menos de um ano de mandato a cumprir.

A partir da inclusão ao sistema eleitoral da chamada “janela partidária”, o que se verifica é que o fluxo de migrações partidárias voltou a ser deveras intenso.

Em relação à Câmara dos Deputados, analisando-se os dados da legislatura anterior (2015-2018), a primeira com a janela, verificou-se que ada menos do que 163 dos 513 deputados eleitos mudaram de partido ao menos uma vez desde as eleições de 2014. Desses, apenas 4 retornaram às siglas pela qual se elegeram. Significa dizer, portanto, que praticamente um terço (31,5%) dos Deputados Federais se transferiram de sigla ao longo desse período.

Levando em conta as informações acima apontadas, o que se extrai é que o fenômeno do transfuguismo retornou à níveis dramáticos. Embora a imposição da perda do mandato ao parlamentar trânsfuga determinada pelos Tribunais Superiores em 2007 tenha conseguido estancar em um primeiro momento o alto fluxo de migração interpartidária, o número das trocas de legenda retornaram ao patamar do período anterior à 2007.

Enquanto de novembro de 2007 a dezembro de 2010 apenas 41 mudanças de agremiação foram efetivadas na Câmara – número reduzido indiscutivelmente em função do novo posicionamento do TSE e do STF, somente na janela de 2018, 116 trocas foram registradas, isto é, praticamente três vezes o número relativo ao período destacado. [4]

Ao mesmo tempo, opera-se um novo fenômeno que antes não existia. A janela se torna um intervalo de intenso fervor, pelo qual as siglas buscam se movimentar a fim de angariar candidatos para as próximas eleições, algo inexistente anteriormente.

Esse acentuado movimento, conforme se depreendeu da janela de 2018, vem se consolidando como um período marcado pelas negociações entre as cúpulas partidárias e os parlamentares, na qual as legendas buscam se tornar atraentes do ponto de vista eleitoral, com o objetivo de conquistar futuros candidatos.

O que se percebe com a criação da janela, prevista como hipótese de justa causa para a mudança de partido, é que ela, além de incentivar o transfuguismo, ainda contribui para a acentuação de um problema há muito diagnosticado no Brasil: a existência de partidos não ideológicos.

Isso porque, pelo fato dela se relacionar diretamente ao período de filiação destinado ao  registro de candidatura eleitoral, ao avaliar a migração interpartidária, o congressista, na boa parte das vezes, aprecia a mudança do ponto de vista pessoal, isto é, no que seria melhor para   seu desempenho nas próximas eleições. A migração dificilmente é realizada apenas em função e uma confluência com o conteúdo programático das agremiações. Dessa forma, a construção e fortalecimento dos programas políticos ideológicos acabam sendo, em consequência, dificultados. Veremos os resultados da janela partidária que se inicia daqui a algumas semanas. As negociações já se iniciaram, e os prognósticos apontam para um fluxo intenso de troca de partidos, influenciado pelas regras de cláusula de barreira e fim das coligações partidárias.

Por: Ettore Valente – Advogado associado do escritório GBSA – Gonçalves e Bruno Sociedade de Advogados. Graduado pela Universidade de São Paulo (USP). Pós-graduando em Direito Processual Civil pela Escola Paulista da Magistratura.


Referências Bibliográficas:

[1] BARROSO, Luis Roberto. A reforma política: uma proposta de sistema de governo, eleitoral e partidário para o Brasil. Disponível em http://disciplinas.stoa.usp.br/pluginfile.php/325583/mod_resource/content/1/reforma%20politica_projeto_ideias.pdf.

[2] O termo transfuguismo foi consagrado pela profa. Monica Caggiano, significando sinônimo de turismo partidário, isto é, a comum prática dde troca de partidos efetivada pelos parlamentares.

CAGGIANO, Monica Herman Salem. Sistemas Eleitorais x Representação Política. São Paulo: Centro Gráfico do Senado Federal, 1987.

CAGGIANO, Monica Herman Salem. A fenomenologia dos trânsfugas no cenário político-eleitoral brasileiro. In LEMBO, Claudio (coord.); CAGGIANO, Monica Herman Salem (org.) O Voto nas Américas. Barueri: Minha Editora, Centro de Estudos Políticos e Sociais, 2008.

[3] ARAS, Augusto. Fidelidade Partidária: A Perda do Mandato Parlamentar. Rio de Janeiro: Lúmen Juris, 2006, p. 296

[4] Dados retirados do Sistema de Filiação Partidária do TSE (FILIA).

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