Como a nova Lei da Sociedade Anônima do Futebol pode impactar o seu clube?

Lei da Sociedade Anônima do Futebol

Promulgada em agosto deste ano, a Lei da SAF prevê uma estrutura jurídica inédita para que os clubes brasileiros passem a se organizar na forma de empresas.

Em 6 de agosto de 2021, foi promulgada a Lei nº 14.193, também conhecida como a Lei da Sociedade Anônima do Futebol (“SAF”). Em um cenário de forte endividamento de muitos dos clubes do futebol brasileiro, a lei busca criar uma alternativa ao modelo de associação sem fins lucrativos adotado pela quase totalidade das entidades de prática do esporte mais popular do país.

Não se trata, no entanto, da primeira iniciativa legislativa nesse sentido. Em 1993, a então promulgada Lei Zico, criada para instituir normas gerais aplicáveis à prática de esportes no país, em seu artigo 11º, facultava, tanto às entidades de prática esportiva quanto às entidades de administração do esporte, a possibilidade de constituírem ou se transformarem em sociedades comerciais com finalidade desportiva. À época, a falta de incentivo à adoção do modelo empresarial por parte do governo fez com que a ideia não pegasse, e o modelo associativo continuou dominante no Brasil.

Anos depois, em 1988, foi promulgada a Lei Pelé, que até hoje rege a prática desportiva no país. Em sua redação original, a lei previa que as competições de atletas profissionais de quaisquer modalidades fossem disputadas exclusivamente por sociedades civis de fins econômicos ou sociedades comerciais. No entanto, após forte oposição dos clubes, o artigo 27º foi alterado em 2000 e, em 2003, foi incluído o artigo 26º da lei, que reafirmava o direito constitucional dos atletas e entidades de prática desportiva de se organizarem livremente.

A grande falha da Lei Pelé foi a flagrante ofensa ao princípio constitucional da autonomia desportiva, consagrado no artigo 217º de nossa Carta Magna. Reconhecida a necessidade de fomento à prática desportiva no Brasil, foi também prevista no texto constitucional, no inciso I do referido artigo, a autonomia das entidades de prática desportiva no país no que diz respeito à sua organização e funcionamento. Nesse sentido, qualquer alteração legislativa que deseje promover uma melhora no modelo organizacional da prática de esportes no país deve se atentar à necessidade da preservação da autonomia das entidades.

Mais recentemente, em 2015, foi promulgada a Lei 13.155, que instituiu o popular Programa de Modernização da Gestão e de Responsabilidade Fiscal do Futebol Brasileiro, o PROFUT. Pautado na ideia de instituir práticas mais saudáveis e modernas na gestão financeira dos clubes brasileiros, o programa criou um novo modelo de parcelamento, mas ao custo das finanças públicas e em prol da classe cartoleira. Apesar da forte adesão, a maioria dos clubes não conseguiu pagar as obrigações assumidas, e muitas das dívidas foram perdoadas pelo poder judiciário.

As iniciativas descritas até aqui ajudam a traçar um panorama do modelo organizacional do futebol brasileiro, onde os clubes, formados majoritariamente por associações, lutam para sobreviver em ambientes políticos conturbados, muitas vezes marcados pelo amadorismo e pela prevalência de conveniências particulares. Os dirigentes das entidades de prática desportiva são, em sua maioria, eleitos, num processo que muitas vezes é regido por interesses que fogem do âmbito do esporte, tendo em vista a quantidade de dinheiro envolvido no meio do futebol e a importância política que provém de se administrar um grande clube brasileiro.

Em meio a este cenário, a mais recente novidade no que diz respeito à organização do futebol brasileiro é justamente a Lei da SAF, que prevê a possibilidade de os clubes brasileiros se constituírem na forma de uma Sociedade Anônima do Futebol, com contornos particulares. Conforme o artigo 2º da lei, é facultado aos clubes a transformação em uma SAF, a cisão do seu departamento de futebol em uma nova pessoa jurídica na forma de SAF, ou até mesmo a criação de uma nova entidade na forma de SAF pela iniciativa de pessoa natural, jurídica, ou fundo de investimento.

Esta pode ser uma opção interessante para muitos dos clubes brasileiros cujas finanças se encontram em mau estado, tendo em vista a previsão do artigo 9º da lei: a SAF não responde pelas dívidas do clube ou da pessoa jurídica que a originou. A lei, no entanto, prevê a vinculação de 20% das receitas da SAF para o pagamento de obrigações contraídas pelo clube originário anteriormente à sua criação. Com esse mecanismo, a SAF terá maior capacidade de contrair empréstimos e investir no departamento de futebol.

Além disso, estão previstas medidas de governança, responsabilidade financeira, controle e transparência das atividades da SAF, além da possibilidade de recuperação judicial ou extrajudicial das entidades endividadas. Trata-se de uma mudança significativa na estrutura organizacional do futebol brasileiro, dessa vez acompanhada de uma série de medidas capazes de incentivar e sustentar a transição dos clubes para o modelo empresarial. Resta saber, no entanto, qual será o impacto cultural que estas medidas trarão para o ambiente do futebol brasileiro.

Em que pese todos os problemas do modelo organizacional do nosso futebol, gerido, via de regra, por uma classe cartoleira homogênea que pouco se altera com o passar dos anos, é certo que, hoje, os clubes de futebol brasileiro não tem donos. Com a perspectiva dos clubes se tornarem objeto de investimento, é difícil prever quais interesses irão se sobressair, tendo em vista a possibilidade de conflito entre os objetivos financeiros e desportivos que poderão surgir no futuro.

Em outros países do mundo, é notório o descontentamento de grande parte da torcida com os donos de seus clubes, que muitas vezes encaram o esporte como um negócio mais do que uma paixão na vida de milhões de pessoas. Protestos de torcedores na Inglaterra, em meio à iniciativa da criação de uma Superliga Europeia, são exemplos desse descompasso entre a cultura do esporte e o interesse financeiro. Levando tudo isso em conta, é certo que a nova Lei da Sociedade Anônima do Futebol é uma tentativa válida de recuperação da situação financeira dos clubes de futebol brasileiros. No entanto, trata-se de uma inovação que nunca tomou corpo no país, e cujas consequências práticas ainda não foram observadas. De todo modo, nos próximos anos, seremos testemunhas de como o modelo do clube empresa poderá transformar o futebol brasileiro.

Por: Gabriel Mariotto – Gonçalves e Bruno Sociedade de Advogados

Referências Bibliográficas:

[1] ABRÃO, Fernando. Limites da autonomia desportiva – Instituto Brasileiro de Direito Desportivo, 2007. Disponível em: https://ibdd.com.br/limites-da-autonomia-desportiva/

[2] FILHO, Álvaro Melo. MedProv 671: Inconstitucionalidade e Hecatombe do Futebol. Revista Brasileira de Direito Desportivo – vol. 30. São Paulo, 2015.

[3] MANSUR, José Francisco C. e CASTRO, Rodrigo R. Monteiro de. Futebol, Mercado e Estado – São Paulo: Quartier Latin, 2016.

[4] https://www.espn.com.br/futebol/artigo/_/id/8632249/premier-league-torcedores-do-united-fazem-novo-protesto-contra-donos-do-clube-onibus-do-liverpool-e-bloqueado-e-tem-pneus-furados

[5] https://trivela.com.br/inglaterra/torcida-do-newcastle-lanca-seu-proprio-uniforme-em-protesto-contra-diretoria-e-patrocinadora/

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